Sessenta cêntimos

 









Calcei as botas
e vesti o casaco.

Estes dois acessórios
disfarçavam o confortável,
mas velho, fato de treino.

Desci à garagem,
entrei no carro
e, tornando a enfrentar o forte nevão,
conduzi rumo ao supermercado.

Na hora do pagamento,
hesitei entre as duas caixas abertas.
Escolhi aquela onde o cliente tinha menos compras.

Erro!

A senhora trazia uns folhetos
que lhe ofereciam um desconto.

Insatisfeita com o trabalho da empregada,
exigiu que chamasse o gerente.

O gerente veio
e resolveu o caso:
pagou à senhora
os sessenta cêntimos que lhe eram devidos.

Ela dirigiu um sorriso vencedor
à pobre empregada,
cujo problema estava à vista de qualquer um:
não conseguia ler letras muito pequenas.

Por sessenta cêntimos,
a senhora criou uma fila
onde permaneci por vinte e cinco minutos.

Ao chegar à rua,
elevei o rosto
e recebi os flocos de neve com um sorriso.

Após a cena da senhora dos sessenta cêntimos,
a mesma paisagem que antes me aborrecia
passou a ser um bálsamo.

Num mundo cinzento,
muita coisa se passa…
Entre elas,
sessenta cêntimos
causando uma fila de espera.

Imaginei a senhora
correndo para o sofá,
monopolizando o telefone e,
durante uma hora,
contando a uma amiga:

— Eu cá não sou de me deixar enganar.
Dinheiro é dinheiro.
O seu a seu dono.

Imaginei as estrelas escondidas,
indiferentes,
simplesmente sendo luz,
alheias a todas as cenas humanas,
conscientes de que tudo é temporário
e que a nossa realidade é criada
pelas coisas que valorizamos.


Ada Abaé

 no livro « esculpindo »


Comentários

  1. Ao ler “Sessenta Cêntimos”, senti uma chama de indignação que é ao mesmo tempo familiar e dolorosa.
    Muitas vezes já me deparei com este tipo de comportamento — a prepotência disfarçada de “direito” ou “razão absoluta”, a desconsideração pelo outro como se a empatia fosse uma opção descartável.

    Lembro-me de uma das últimas vezes que vivi algo assim, ao telefone: um cliente arrogante, convencido de que tinha sempre razão, mesmo quando não tinha, e com uma atitude tão desrespeitosa que parecia esquecer por completo a humanidade do outro.
    Não pude deixar de pensar: “Se assim lavas os dentes, que cuidado tens com a própria língua?” — palavras que ficaram presas na garganta, pois sei que não se deve reagir assim, mas que traduzem a impaciência que se acumula diante de tanta ignorância.

    É revoltante ver a falta de educação e o desprezo que certos comportamentos carregam, e é aí que o texto ressoa em mim. Ele não é apenas sobre o episódio em si, mas sobre como a paciência, a dignidade e a firmeza interior se tornam quase atos de sobrevivência.

    Obrigada por partilhares esta reflexão. Por me lembrardes que, por mais desumanos que sejam alguns encontros, podemos manter a nossa integridade, a nossa voz, e não permitir que a arrogância alheia nos arraste para o mesmo lamaçal.

    Com reconhecimento e intensidade,
    Carmen Dolores

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  2. Relembrando quando falaste do teu trabalho atual: as profissões que mais mereciam um pagamento justo seriam aquelas de quem atende o público.
    Por vezes, enquanto espero a minha vez, observo atentamente cada movimento do rosto, dos olhos e da boca dos empregados.
    Quanta força interior precisam para conter o que os corrói por dentro, escondendo entre sorrisos e gestos o desgaste que ninguém vê.

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